Por Raquel Ulhôa | Valor
BRASÍLIA - Em julho de 2013, quando estava internado no hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, recuperando-se de cirurgia abdominal para remoção de um tumor gastrointestinal, realizada em 29 de junho, o governador petista Marcelo Déda, de Sergipe, recebeu a visita do ex-governador e ex-ministro José Serra (PSDB). Não conversaram sobre política. Trocaram dicas de livros e filmes.
“Ele me sugeriu ‘An Ordinary Execution’, um filme francês, sobre o último ano de vida de Stálin, e sua relação com uma médica que o atendia, que ele praticamente sequestra. Assisti no mesmo dia. Excelente. Em troca, eu lhe prometi, e lhe mandei, uma biografia do Stálin, do Simon Montefiore”, contou Serra ao Valor. Para o tucano, Déda era inteligente, rápido, bom gestor e divertido. “Imitava o Albano Franco com perfeição”, lembra.
Marcelo Déda faleceu por volta das 3h30 da madrugada desta segunda-feira, após apresentar piora progressiva de seu estado de saúde no último sábado, dia 30 de novembro. Ele estava internado no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, e lutava contra um câncer gastrointestinal há um ano e três meses. Segundo nota oficial do hospital, o corpo do governador será velado no Palácio-Museu Olímpio Campos.
A presidente Dilma Rousseff o chamava às vezes de “Dédinha” e o considerava “um poeta”. Em discurso na inauguração da Ponte Gilberto Amado, em janeiro deste ano, contou que o governador lia poesia para ela. “Déda me visita e lê poesia. (...) É a única pessoa que me dá livro de presente e marca a página que eu tenho de ler, grampeia, bota um cartãozinho e diz: ‘(...) você tem de ler isso aqui’. O presente do Déda é especial, com roteiro para você usufruir. Tenho imenso prazer de escutar as poesias do Déda. Espero que cedo ele me visite. Sei que vai pedir mais coisas, mas também vai ler poesia”.
Eleito duas vezes deputado estadual, duas vezes deputado federal, duas vezes prefeito de Aracaju e duas vezes governador de Sergipe, com vitórias históricas, que mudaram o cenário político do Estado, Déda foi um dos melhores quadros do PT, muitas vezes crítico da direção partidária. Mas não ocupou cargos no governo Luiz Inácio Lula da Silva — de quem era compadre (Lula é padrinho de uma de suas filhas) e interlocutor frequente — porque era prefeito de Aracaju e optou pelo projeto político local.
A estreia de Déda como quadro nacional do PT, segundo dirigentes da legenda, foi no histórico 5º Encontro Nacional do partido, em 1987, que aprovou a estratégia de alianças, como alternativa democrática e popular. Lula indicou o sergipano para defender, à militância, a tese de que mudar o país não era tarefa de um partido só. A escolha provocou apreensão entre os dirigentes paulistas. Mas Déda, brilhante orador, “estava inspirado e fez um discurso apoteótico”, diz o ex-presidente do PT José Eduardo Dutra, amigo de 32 anos.
Como político e amigo, Déda sempre teve importância na vida de Lula, antes e depois de chegar ao Palácio do Planalto. Eles se aproximaram em 85, na primeira campanha do sergipano a prefeito de Aracaju. Ele não foi eleito. Após a derrota na eleição presidencial de 89, Lula chorou muito no ombro do compadre. Já presidente, em momentos de crise, como no episódio do mensalão, ou antes de tomar decisões importantes, Lula o chamava Brasília.
Advogado, apreciador de poesia, filosofia e mitologia greco-romana, ex-cineasta amador e flamenguista de não perder um jogo do time, Déda buscava diálogo e boa relação pessoal com adversários políticos.
No governo Fernando Henrique Cardoso, então deputado federal, foi importante interlocutor da oposição com o presidente tucano. Apoiou a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal e a estabilidade monetária. Sempre mostrou vocação para o Executivo e teve preocupação com o equilíbrio orçamentário.
Quando Déda foi líder do PT na Câmara (1998-99), Aécio Neves liderava o PSDB. Entre os petistas com os quais negociou, Aécio considera Déda o mais “ponderado e cumpridor de acordos”. Naquela época, ambos alimentavam a “utopia” de futura aliança programática entre os dois partidos, para que nenhum deles ficasse “refém de forças políticas conservadoras”. O petista foi entusiasta da aliança de Aécio com Fernando Pimentel (PT) em Belo Horizonte, para a eleição de Márcio Lacerda (PSB) prefeito da capital. Via, ali, um “laboratório” para eventual parceria nacional.
Aos 53 anos, casado e pai de cinco filhos (três mulheres do primeiro casamento e dois meninos do segundo), Déda integrava uma nova geração de governadores do Nordeste, ao lado de Eduardo Campos, do também petista Jaques Wagner (BA) e de Cid Gomes, do Ceará (recém filiado ao Pros).
Desde a primeira executiva nacional do PT, Déda fez parte de um grupo “jovem” da direção nacional, de outros Estados do país, que não integrava o “núcleo duro” dirigente, composto por uma maioria paulista. Desse grupo — “soft” — da direção petista, também faziam parte, entre outros, Paulo Delgado (MG) e Jaques Wagner. “O que caracterizava Déda era uma total liberdade de pensamento e formulações muito claras, independentes. Era um desbravador, pensador independente e ousado”, afirma Delgado.
O próprio mineiro aponta diferenças entre eles: “Eu era franco atirador. Ele era mais orgânico. Sempre foi um conciliador”, diz. “Praticava o diálogo interpartidário com muita sabedoria”.
Déda era da corrente majoritária do PT —hoje CNB (Construindo um Novo Brasil) —, da qual se afastou após o episódio do mensalão. Chegou a assinar a tese “Mensagem ao Partido”, lançada em congresso da legenda de 2007 por um grupo descontente com os rumos do partido. Mas não migrou para outra corrente. Mesmo quando discordava da direção, defendia internamente sua posição, mas votava com a maioria.
Apontou “equívocos” na condução do partido no episódio do mensalão e criticou o tratamento duro com militantes que condenavam suposta mudança ideológica do partido, como Heloísa Helena, Chico Alencar e Plínio de Arruda Sampaio. Então deputado por Sergipe, o petista manifestou-se contra o rompimento do PT com o governo Itamar Franco, após o impeachment de Fernando Collor de Mello.
Sobre o episódio do mensalão, Déda declarou que falharam os “anticorpos” do PT contra a corrupção. Mas, católico praticante — “até meio carola”, segundo amigos —, citou um trecho da Bíblia ao se solidarizar com os petistas, principalmente José Genoino, condenados pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
“Há um trecho em Mateus que precisa ser lido com mais frequência. É aquele em que o evangelista diz que Jesus relatara que, no fim dos tempos, ele agradeceria às pessoas que o visitaram quando estava doente, que foram à prisão quando estava preso. Eles dirão: ‘Mas eu nunca te vi na prisão, nunca te vi doente’. Ele disse: ‘Aquele preso a quem foste visitar, aquele doente a quem visitaste era eu’. Isso, não precisa ser religioso para entender”.
Marcelo Déda Chagas nasceu em 11 de março de 1960, na cidade de Simão Dias, a 110 km de Aracaju. Caçula de cinco irmãos, estudou em escola tradicional do interior do Estado, teve formação católica e foi coroinha na matriz da cidade. Aos 13 anos, mudou-se para Aracaju e, aos 15 anos, descobriu a paixão pela literatura, na biblioteca do avô, José de Carvalho Déda, escritor e jornalista, que exerceu três mandatos de deputado estadual.
No segundo grau, iniciou a militância política. Participou de sua primeira greve, concorreu ao Centro Cívico (foi derrotado) e integrou o grupo que tentou reconstruir a União Sergipana dos Estudantes Secundaristas (Uses), proibida pelo regime militar. Foi presidente do cineclube e cineasta amador.
Na Universidade Federal de Sergipe, onde cursou Direito (1980 a 84), foi um dos fundadores do cineclube do Diretório Central dos Estudantes. Em 1981, filmou visita de Lula a Sergipe. Em 1979, participara da fundação do PT. Déda dizia ter sido influenciado pela obra do filósofo comunista Antonio Gramsci e de outros “marxistas heterodoxos”.
Em 1982, com 22 anos, Déda concorreu a deputado estadual pelo PT. Dois anos depois, participou de comícios da campanha das Diretas Já no Estado, um deles com a participação de Lula e o deputado Ulysses Guimarães. Em 85, disputou a Prefeitura de Aracaju, aos 25 anos, já pelo PT e ficou em segundo lugar. Foi eleito deputado estadual um ano depois. Não foi reeleito em 1990, mas em 94 ganhou o primeiro mandato de deputado federal. Reeleito em 98 com a segunda maior votação proporcional do país, foi líder da bancada e do Bloco de Oposição.
Em 2000, foi eleito prefeito de Aracaju no primeiro turno, com 52,80% dos votos válidos. Foi reeleito também no primeiro turno, com 71,38% dos votos válidos (a maior votação proporcional do país). Revitalizou a cidade, construiu e reformou postos de saúde e construiu novas avenidas. Durante seu governo, Aracaju foi elevada à qualidade de capital nordestina da qualidade de vida, segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas.
Renunciou à prefeitura em 2006 para concorrer a governador. Foi eleito com 52,48% dos votos válidos e reeleito em 2010 (52%). Nas duas vezes, derrotou João Alves, que já tinha governado o Estado por três mandatos. A primeira eleição de Déda governador interrompeu um ciclo de alternância entre os dois principais grupos de oposição ao PT no Estado, de João Alves (DEM) e o do também ex-governador Albano Franco (PSDB).
Se na prefeitura Déda mudou a qualidade de vida da população com uma série de ações, no governo do Estado não há uma marca registrada forte, mas o Estado possui os melhores indicadores econômicos e sociais do Nordeste. Nos últimos anos, apresentou desempenho superior à média da região e do país.
Em outubro de 2009, no primeiro mandato como governador, Marcelo Déda retirou um nódulo benigno no pâncreas no Sírio-Libanês. A cirurgia causou complicações (aderência) que o levaram a fazer nova operação. Ficou cem dias afastado do governo. Em outubro de 2012, no segundo mandato, foi diagnosticado o câncer no sistema gastrointestinal. A partir de então, começou o tratamento quimioterápico no mesmo hospital.
Enquanto esteve internado, Lula ia visitá-lo sempre. Em 25 de outubro, recebeu Dilma e postou em sua página no Twitter uma foto na qual — vestido com uma camisa do Flamengo — recebe da presidente um abraço e um carinho no rosto. O senador Wellington Dias (PT-PI), depois de estar com ele no Sírio-Libanês, em novembro, afirmou que Déda mantinha o alto astral. “A gente vai consolá-lo e ele é que acaba consolando a gente”, diz.
Mesmo internado na UTI, Déda tentava acompanhar a política. Em 21 de novembro, em uma das frequentes visitas do senador Humberto Costa (PT-PE), outro compadre (o pernambucano é padrinho de um de seus filhos), falou sobre a prisão de José Genoino, José Dirceu e Delúbio Soares. “Ele comentou como hoje é forte a manifestação do ódio das elites pelo PT e que o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa, deu uma demonstração disso”.
Aécio visitou-o no Sírio em 9 de novembro. Déda chegou a perguntar ao tucano como estava indo a campanha. Em 19 de novembro, recebeu o governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB), outro presidenciável da oposição e amigo.
Déda foi usuário atuante do Twitter, com interrupções nos momentos mais delicados da doença. Durante a visita do Papa Francisco ao Brasil, fez vários comentários. Definiu o Papa como “carismático, humilde, popular” e considerou uma “verdadeira renovação católica” as posições mostradas por Francisco, como as críticas à cultura do capital. “Me sinto feliz com o Papa, esperançoso numa igreja dos pobres, ativa, solidária, como os dois Franciscos: o santo e o Papa. Bom retorno, Francisco”, escreveu, no dia do retorno do Papa a Roma.
Em 24 de julho, quando recebeu alta, após a última cirurgia (mas ficou em São Paulo, hospedado em um hotel, para continuidade do tratamento), postou no Twitter: “Foi um gigantesco obstáculo, mas a recuperação da cirurgia prossegue muito bem. Espero em Deus estar de volta a minha amada Aracaju em breve”. E continuou: “Ah! Não deem alta às orações (rsrs), continuem pedindo a Deus pela minha saúde. Obrigado!”