Por Geovani Oliveira
Circula no Senado Federal uma proposta de emenda à Constituição (PEC), de iniciativa do senador Ciro Nogueira (PP/PI), que, sob o pretexto de promover uma ampla reforma política, na verdade busca prorrogar os atuais mandatos de prefeitos e vereadores, estendendo-os por mais dois anos e ainda autorizando um terceiro mandato consecutivo de 6 anos. Trata-se de uma medida flagrantemente inconstitucional e profundamente lesiva aos pilares da República, da soberania popular e do Estado Democrático de Direito.
A chamada “reforma”, que deveria ser precedida de um debate nacional robusto, transparente e plural, está sendo conduzida de forma silenciosa e sorrateira no Congresso Nacional, sem a devida participação da sociedade civil, dos juristas, da academia ou das entidades representativas da democracia brasileira.
A PROPOSTA DA PEC E SUA ABERRAÇÃO JURÍDICA
Segundo a minuta em circulação, a PEC teria como objetivos:
• Extinguir a reeleição para cargos do Executivo a partir de 2026;
• Unificar as eleições municipais, estaduais e federais, com a consequente prorrogação de mandatos em curso por dois anos;
• Permitir que prefeitos no segundo mandato concorram novamente, agora a um mandato de seis anos, totalizando 14 anos consecutivos no poder.
Ora, além de alterar profundamente o sistema político-eleitoral brasileiro sem o devido debate democrático, essa proposta esbarra em cláusulas pétreas da Constituição Federal, sendo, portanto, inadmissível sob a ótica jurídico-constitucional.
AFRONTA À ALTERNÂNCIA DE PODER
Um dos pilares fundamentais da democracia representativa é a alternância de poder, princípio implícito, mas indissociável da forma republicana de governo. A extensão do mandato e a concessão de um terceiro mandato consecutivo viola frontalmente esse princípio, criando verdadeiros feudos políticos em municípios de todo o país.
A Constituição Federal, em seu art. 1º, parágrafo único, estabelece que:
“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”
A soberania popular pressupõe o direito de escolha periódico e a limitação do poder político, sob pena de perpetuação de mandatos e formação de estruturas autoritárias locais.
VIOLAÇÃO DA PERIODICIDADE DO VOTO
A periodicidade das eleições é princípio estruturante do regime democrático. Não se pode admitir que, por conveniência política, os detentores de mandato obtenham uma prorrogação não autorizada nas urnas. A Constituição estabelece que os mandatos são de 4 anos e sua prorrogação fere o princípio da legalidade (art. 5º, II) e da periodicidade eleitoral (art. 60, §4º, II e V).
A proposta em discussão viola diretamente os seguintes dispositivos constitucionais:
• Art. 14, caput – que garante a soberania popular por meio do sufrágio universal e do voto direto e secreto, com valor igual para todos;
• Art. 60, §4º, II e V – que veda emendas tendentes a abolir a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, além da separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais.
Portanto, qualquer tentativa de prorrogação de mandatos sem consulta direta ao eleitorado, e que ainda permita um terceiro ciclo consecutivo de poder, macula a essência da democracia e atinge cláusulas pétreas da Carta Magna.
INSEGURANÇA JURÍDICA E O PRECEDENTE PERIGOSO
A eventual aprovação dessa PEC abriria precedente extremamente perigoso. O Congresso estaria, na prática, usurpando o poder do eleitor e legitimando uma extensão artificial de mandatos, sem que houvesse respaldo nas urnas. Trata-se de uma medida autorreferente, onde os próprios beneficiários legislam em causa própria — o que fere a moralidade administrativa e a ética republicana.
Além disso, o Judiciário será chamado a se manifestar, pois há uma violação objetiva e direta ao núcleo imutável da Constituição Federal, podendo o Supremo Tribunal Federal (STF), no exercício de seu controle jurisdicional de constitucionalidade, declarar nula a proposta, ainda que aprovada no Congresso.
UM ALERTA À SOCIEDADE E AO DIREITO
A emenda constitucional em tramitação representa um golpe silencioso ao Estado Democrático de Direito. Prorrogar mandatos de forma artificial e permitir uma terceira reeleição fere os princípios da legalidade, isonomia, alternância de poder, soberania popular e da própria dignidade do processo eleitoral.
A Constituição de 1988 não admite retrocessos em direitos e garantias fundamentais, tampouco permite que se burle a vontade popular por meio de manobras legislativas. É hora da sociedade, da OAB, da advocacia, das universidades, do Ministério Público e da imprensa livre se posicionarem.
A democracia não sobrevive a golpes sutis. E a História não absolverá os que compactuarem com a supressão do voto como instrumento de escolha legítima do poder.
*Advogado – Especialista em Direito Constitucional*
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