segunda-feira, 24 de novembro de 2025

COLUNA ESPECIAL | ITACURUBA - ACIDADE QUE O RIO ENGOLIU | NA LUPA 🔎 | POR EDNEY SOUTO

ITACURUBA: A CIDADE QUE O SERTÃO VIU SUBMERGIR

OS IMPACTOS DA BARRAGEM DE ITAPARICA NA VIDA, NA ALMA E NO FUTURO DO POVO SERTANEJO

UM MUNICÍPIO PEQUENO COM  HISTÓRIA MAIOR QUE ELE PRÓPRIO

Antes da inundação, Itacuruba era um retrato fiel do sertão ribeirinho: um povo simples, trabalhador e profundamente ligado ao Velho Chico. A cidade vivia do rio — pescando, cultivando nas várzeas férteis e movimentando um comércio que dependia do fluxo constante de embarcações. Emancipada em 1963, deixou de ser distrito de Floresta e passou a caminhar com as próprias pernas.
Mesmo pequena, com clima seco e clima social acolhedor, Itacuruba tinha vida, movimento, sons, cheiros e rotinas. O crescimento era humilde, mas contínuo. Era uma cidade que existia porque estava de frente para o rio — e do rio tirava força.

A CHEGADA DA BARRAGEM E A MUDANÇA QUE NINGUÉM PEDIU

Quando a Chesf iniciou as obras da Barragem de Itaparica, no início dos anos 1980, a promessa era de desenvolvimento regional, geração de energia e modernização do Nordeste. Mas o preço foi alto. Muito alto.
O projeto previa a criação de um enorme lago artificial — e ele engoliria casas, igrejas, comércios, cemitérios e a própria história de milhares de pessoas. Cidades como Petrolândia e Rodelas perderam territórios, mas conseguiram manter parte das áreas urbanas.
Itacuruba não teve a mesma sorte: seu traçado urbano inteiro ficava na área que seria inundada. A cidade estava condenada a desaparecer sob as águas de um lago que nem sequer existia ainda.

A MUDANÇA FORÇADA E O DIA EM QUE A CIDADE SUMIU DO MAPA

A água começou a subir. Devagar, silenciosamente. Casas foram sendo evacuadas às pressas, móveis embrulhados, objetos recolhidos com urgência. Famílias inteiras se despediram de lugares onde haviam nascido, crescido e enterrado seus parentes.
O que não foi levado ficou para trás: galpões, lojas, a antiga igreja matriz — tudo submerso.
Em março de 1988 foi inaugurada a nova Itacuruba, construída a quilômetros do rio. Um lugar planejado, mas frio. Estradas largas demais para quem estava acostumado a ruas estreitas. Casas iguais demais para quem tinha orgulho de suas janelas coloridas.
O distanciamento físico do rio representava também o distanciamento da própria identidade do povo.

INDENIZAÇÕES, ILUSÕES E A CRISE SILENCIOSA QUE VEIO DEPOIS

A Chesf indenizou famílias e ofereceu pagamento mensal temporário para compensar o impacto da mudança. Para muitos, foi dinheiro que nunca imaginaram ter.
Carros foram comprados. Casas novas erguidas. Uma alegria momentânea tomou conta da cidade recém-instalada no sertão seco.
Mas com o tempo, a água parou de subir — e o dinheiro também.
Sem o rio por perto, sem as várzeas produtivas, sem o comércio fluvial e sem oportunidades, a cidade mergulhou em uma crise profunda.
A população, antes ativa, viu a ociosidade dominar o cotidiano. A dependência do auxílio e a falta de atividades produtivas abriram espaço para algo mais grave: o sofrimento emocional. O vazio. A tristeza. E, logo, o adoecimento silencioso.

A ECONOMIA QUE SEC0U JUNTO COM O LAÇO COM O RIO

A economia de Itacuruba sofreu um impacto brutal.
Antes da barragem
:

  • agricultura irrigada produtiva,

  • comércio de passagem forte,

  • pesca abundante,

  • criação de animais,

  • atividades ribeirinhas diversas.
    Depois da mudança:

  • o solo era pobre, seco, difícil de cultivar;

  • o comércio perdeu movimento, pois ninguém mais passava pela cidade;

  • a pesca virou memória;

  • as feiras perderam compradores;

  • a cidade se isolou.

Com o tempo, o que restou como atividade econômica foi:

  • o funcionalismo público;

  • pequenos mercados e mercearias;

  • serviços básicos;

  • e programas sociais que sustentam boa parte da população.
    Itacuruba deixou de ser uma cidade de oportunidades e virou uma cidade de resistência.   

TRAGÉDIA INVISÍVEL: DEPRESSÃO, TRISTEZA E O ALTO ÍNDICE DE SUICÍDIOS

A dor coletiva não demorou a aparecer nos números.
Em 2007, estudos mostraram que Itacuruba tinha um índice de suicídios dez vezes maior que a média brasileira. Dez vezes.
O impacto foi tão forte que a cidade passou a ser tema de pesquisas acadêmicas, matérias jornalísticas nacionais e debates sobre saúde mental.
O que os especialistas encontraram foi um quadro típico de deslocamento traumático:

  • perda de território,

  • perda de identidade,

  • ruptura com o modo tradicional de vida,

  • isolamento geográfico,

  • falta de perspectivas e oportunidades.

Em 2025, segundo dados da própria prefeitura, foram registradas 36 tentativas de suicídio — duas fatais.
Quase uma por semana.
É a prova viva de que a tragédia de Itacuruba não pertence ao passado. Ela continua acontecendo.

A HERANÇA DA BARRAGEM: MEMÓRIAS SUBMERSAS E FUTURO INCERTO

A Barragem de Itaparica deslocou aproximadamente 40 mil pessoas em Pernambuco e Bahia, inundando cerca de 83 mil hectares.
Mas Itacuruba carrega a marca mais profunda:
foi a única cidade completamente apagada do mapa pela água.
E, hoje, a antiga Itacuruba ainda está lá embaixo.
Submersa, inteira, silenciosa.
Quando o nível do lago baixa, moradores contam que às vezes conseguem ver telhados, torres, pedaços de ruas — como se o passado insistisse em pedir socorro.
As memórias estão ali, trancadas sob um espelho d’água que não reflete, mas esconde.

UM POVO QUE RESISTE, LUTA E SEGUE EM PÉ MESMO ABAFADO PELA DOR

Apesar de tudo — da inundação, da mudança forçada, da perda de identidade, da crise econômica e do peso emocional — o povo de Itacuruba não se rendeu.
O sertanejo tem uma força que surpreende. Uma fé que levanta. Uma coragem que renova.
A cidade reconstrói a própria história todos os dias, reinventando seu jeito de viver no sertão.
É uma luta silenciosa, mas cheia de dignidade.
Itacuruba segue de pé. E isso, por si só, já é uma vitória. É isso!

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