O prefeito nomeou o candidato Lucas Vieira Silva para o cargo de procurador judicial do município em vaga reservada a PcD, apesar de o candidato não ter se inscrito nessa condição no concurso realizado em 2022. A decisão surpreendeu o corpo técnico da PGM Recife porque alterou o resultado de um certame homologado há mais de dois anos e retirou a vaga do único candidato PcD originalmente classificado, que aguardava a nomeação desde então.
O cargo em disputa está entre os mais cobiçados do serviço público municipal, com remuneração líquida média superior a R$ 30 mil, considerando gratificações e vantagens. A mudança no resultado final do concurso, portanto, não apenas reorganizou uma lista classificatória já consolidada, como também redefiniu o acesso a uma das carreiras mais prestigiadas da administração municipal.
De acordo com documentos do processo administrativo, Lucas Vieira Silva figurava na 63ª colocação da ampla concorrência, posição distante das vagas inicialmente ofertadas. Somente em maio de 2025, quase três anos após a realização do concurso e mais de dois anos depois da homologação, ele apresentou requerimento à Prefeitura alegando ter sido diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e solicitando a inclusão tardia na lista de PcD, com submissão à perícia biopsicossocial.
O pedido foi analisado pelo corpo técnico da Procuradoria, que em parecer assinado pela procuradora Maria Carolina Lindoso de Melo rejeitou a pretensão. O entendimento foi categórico ao apontar ausência de razoabilidade na aceitação de comprovação extemporânea de deficiência, além de violação direta ao princípio da vinculação ao edital. O parecer destacou ainda que a estrutura do concurso já estava encerrada, com contrato da banca examinadora expirado, e que a alteração da ordem classificatória após mais de dois anos atentaria contra os princípios da igualdade e da impessoalidade.
Apesar disso, o procurador-geral do município, Pedro Pontes, que não integra a carreira efetiva da Procuradoria, decidiu contrariar o entendimento técnico do órgão. Em decisão unilateral, sustentou que o indeferimento teria priorizado um “formalismo editalício” em detrimento da efetivação de direitos fundamentais da pessoa com deficiência. Com base nesse argumento, determinou a inclusão do candidato na lista de PcD, o que resultou na republicação do resultado do concurso em dezembro deste ano e na imediata nomeação.
A decisão administrativa ganhou contornos ainda mais sensíveis após a confirmação de que o novo procurador nomeado é filho de Maria Nilda Silva, procuradora de contas do Ministério Público de Contas junto ao Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE-PE), órgão responsável por fiscalizar atos administrativos e gastos públicos de todas as gestões, inclusive a do Recife. Embora não haja prova de interferência direta, o vínculo familiar agravou a percepção de conflito de interesses e ampliou a repercussão negativa do caso.
A reação institucional foi rápida. No mesmo dia da nomeação, a Associação dos Procuradores do Município do Recife encaminhou ofício ao prefeito João Campos pedindo a suspensão imediata de qualquer ato baseado na lista modificada. No documento, a entidade afirma que a alteração posterior do resultado final afronta princípios como segurança jurídica, legalidade, isonomia, proteção da confiança legítima e vinculação ao edital, todos consagrados no artigo 37 da Constituição Federal.
A APMR também cobrou o restabelecimento da lista originalmente homologada até que eventual controvérsia seja resolvida pelas vias jurídicas adequadas, além da adoção de providências administrativas para garantir a estabilidade da carreira e o respeito às regras do concurso público.
Ao chancelar uma decisão que reescreve o resultado de um concurso anos depois de sua homologação, João Campos assume o ônus político e jurídico de um ato que fragiliza a credibilidade do processo seletivo e lança dúvidas sobre o compromisso da gestão com a impessoalidade e a igualdade de condições entre os candidatos. O discurso da inclusão, legítimo e necessário, passa a ser questionado quando utilizado para justificar uma mudança seletiva que beneficia um único concorrente e sacrifica direitos já consolidados de outro.
O episódio ainda promete desdobramentos administrativos e judiciais. Mais do que uma nomeação isolada, o caso escancara o risco de relativização das regras do concurso público e coloca em xeque a segurança jurídica que deveria nortear a relação entre o Estado e os cidadãos que se submetem, de boa-fé, às exigências de um edital.
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