Por Greovário Nicolas
A imagem de Michelle Bolsonaro vestindo uniforme da Polícia Rodoviária Federal, ao lado do então diretor-geral Silvinei Vasques, não é um detalhe folclórico nem um simples excesso de zelo simbólico. É um retrato cristalino de um projeto político que confundiu, deliberadamente, Estado com partido, autoridade pública com propaganda eleitoral e instituições republicanas com marketing ideológico.
Fica a pergunta inevitável — e incômoda para alguns: se fosse Janja, usando o mesmo uniforme, qual seria o escândalo produzido? Quantos editoriais indignados surgiriam? Quantos inquéritos seriam imediatamente exigidos? A resposta é óbvia e escancara a hipocrisia seletiva que pauta parte do debate público quando o assunto envolve a extrema-direita.
Não há precedentes republicanos de “primeiras-damas” desfilando com uniforme policial. E isso não é casual. O uniforme representa o poder coercitivo do Estado, a autoridade legal conferida a servidores que se submetem a regras rígidas, hierarquia, disciplina e dever funcional. Quando esse símbolo é apropriado por quem não integra a corporação, não se trata de homenagem: trata-se de usurpação simbólica de uma instituição que pertence à sociedade, não a um projeto de poder.O episódio é mais uma evidência de como a extrema-direita saqueou simbolicamente as polícias, transformando-as em vitrines eleitorais. Alimentou-se um populismo penal ruidoso, baseado em slogans, bravatas e encenações, enquanto os problemas reais da segurança pública eram convenientemente ignorados. Houve propaganda em excesso, enganação em abundância e resultados quase nulos para os trabalhadores da segurança.
Na prática, o governo Bolsonaro não concedeu aumento real, não recompôs perdas inflacionárias e ainda empurrou goela abaixo uma reforma da Previdência profundamente danosa aos profissionais da área. Não houve qualquer avanço estrutural sério: nada de ciclo completo de polícia, nada de carreira única, nada de fortalecimento da atuação municipal, nada de política consistente de saúde mental para quem vive sob estresse permanente. O discurso era duro; a política pública, inexistente.Ao lado de Michelle estava Silvinei Vasques, personagem central dessa degradação institucional. Usou o uniforme da PRF para pedir votos, fez campanha explícita e, em 2022, comandou uma operação de fiscalização desproporcional no Nordeste com objetivo político claro: dificultar o deslocamento e o voto de eleitores do então candidato Lula. Isso não é militância; é abuso de poder.
O desfecho é conhecido e vergonhoso. Silvinei foi condenado por envolvimento na tentativa de golpe, rompeu tornozeleira eletrônica, fugiu para o Paraguai e acabou preso portando documentos falsos. Um ex-diretor-geral da PRF agindo como criminoso comum. A mim, não surpreende — tampouco a quem conhece seu histórico. Um homem com condenação por agressão a frentista e outras acusações jamais deveria ter ocupado o cargo máximo de uma polícia federal.
Que fique registrado, sem relativizações: polícia não é partido, não é instrumento de marketing e não pode servir de palanque eleitoral. O uso de uniforme policial por quem não integra a corporação é ilegal e simboliza a apropriação indevida de uma instituição de Estado, que deve ser profissional, técnica e eleitoralmente neutra.
É evidente que policiais são cidadãos, com pleno direito à participação política: podem se filiar, votar e ser votados. O que não podem — e não devem — é partidarizar a polícia, nem utilizar fardas, símbolos, estruturas ou autoridade estatal para favorecer candidatos ou projetos políticos. Isso rompe a paridade de armas entre concorrentes e fere de morte a democracia.
Uma democracia sólida exige uma polícia republicana. E uma polícia republicana começa pelo respeito ao uniforme — que não pode, em hipótese alguma, virar fantasia de campanha.
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