Os intervalos bíblicos realizados nas escolas públicas de Pernambuco têm se tornado uma questão central em debates que envolvem a relação entre educação, liberdade religiosa e laicidade do Estado. Essa prática, que consiste em momentos de oração e leitura da Bíblia durante o período escolar, inicialmente apresentada como voluntária, foi alvo de atenção por parte de órgãos como a Secretaria de Educação de Pernambuco (SEE-PE), o Sindicato dos Trabalhadores da Educação do Estado de Pernambuco (Sintepe) e o Ministério Público de Pernambuco (MPPE), que receberam denúncias apontando para práticas compulsórias em algumas escolas e discriminação religiosa contra alunos de crenças diferentes.
As denúncias indicam que, em algumas escolas, os intervalos bíblicos estariam sendo conduzidos de maneira que exclui alunos de outras religiões, como candomblé e umbanda, além de não haver abertura para que essas crenças tenham espaço equivalente. Relatos também incluem casos de discriminação verbal e intimidação, com estudantes de religiões afro-brasileiras sendo chamados de "filhos do diabo". A ausência de supervisão adequada e a utilização de espaços escolares para práticas religiosas específicas acentuaram o debate sobre o limite entre liberdade religiosa e o caráter laico do ensino público.
Na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), dois projetos de lei em defesa dos intervalos bíblicos começaram a tramitar, refletindo o apoio de parlamentares evangélicos à prática. Um dos projetos, apresentado pelo deputado Abimael Santos, busca instituir sanções administrativas contra ações que possam inibir a realização de práticas religiosas nas escolas, com penalidades que incluem advertências e multas que podem chegar a R$ 50 mil. Paralelamente, na Câmara dos Deputados, a vereadora recifense Missionária Michele Collins, que assumiu temporariamente o mandato de deputada federal, apresentou dois projetos para regulamentar os intervalos bíblicos em âmbito nacional, alegando que tais momentos promovem valores éticos e espirituais importantes para os jovens.
Essas movimentações políticas foram impulsionadas por uma audiência pública realizada no dia 11 de setembro, convocada pelo deputado estadual Joel da Harpa. Durante o evento, que contou com a presença de parlamentares, religiosos e educadores, Joel argumentou que os intervalos bíblicos têm papel crucial na formação moral dos jovens, afastando-os de problemas sociais como o uso de drogas e a violência. A audiência foi marcada por discursos inflamados e pela presença de grupos religiosos que defenderam a prática como um direito garantido pela liberdade de culto. No entanto, a reunião também foi alvo de críticas por parte de representantes do Sintepe, que destacaram as dificuldades de conciliar a prática com o princípio constitucional da laicidade.
A controvérsia ganhou novos contornos em outubro, quando o Ministério Público abriu um procedimento administrativo para investigar as denúncias sobre a realização de cultos evangélicos em escolas estaduais, sem a inclusão de outras crenças. Durante esse período, representantes da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), organização que tem como um de seus fundadores a senadora Damares Alves, solicitaram acesso aos documentos e denúncias levantadas pelo MPPE, oferecendo suporte jurídico a favor da prática. A Anajure argumenta que o cerceamento dos intervalos bíblicos configura uma violação à liberdade religiosa, enquanto opositores defendem que tais práticas, em espaços públicos, devem respeitar a pluralidade cultural e religiosa da sociedade brasileira.
Em novembro, um episódio emblemático intensificou ainda mais o debate. Uma audiência pública sobre o tema, programada para ocorrer em um colégio católico de Recife, foi cancelada por superlotação. No local, representantes do Sintepe foram hostilizados por participantes favoráveis aos intervalos bíblicos. A presidente do sindicato, Ivete de Oliveira, relatou ter sido alvo de xingamentos, o que levou à intervenção de um promotor do Ministério Público presente no evento.
Enquanto isso, as escolas continuam sendo palco de tensão. Em uma unidade em Paudalho, estudantes de candomblé relataram que não tiveram o mesmo espaço concedido para a prática de suas crenças, enquanto intervalos evangélicos e católicos eram realizados regularmente. Em outra escola, professores mencionaram dificuldades para organizar atividades religiosas de matrizes africanas, enfrentando resistência tanto de colegas quanto de parte da comunidade escolar.
Nas redes sociais, o debate também ganhou proporções significativas, com parlamentares, líderes religiosos e estudantes promovendo campanhas em defesa dos intervalos bíblicos. O deputado Joel da Harpa e outros políticos alinhados com a base bolsonarista têm utilizado suas plataformas digitais para mobilizar apoio e criticar o que consideram uma tentativa de censura religiosa. Grupos de estudantes favoráveis à prática criaram perfis específicos para compartilhar relatos e promover ações, enquanto um abaixo-assinado em defesa dos intervalos bíblicos já ultrapassou 17 mil assinaturas.
Por outro lado, a SEE-PE e o MPPE reforçaram os esforços para receber denúncias e avaliar a conduta das escolas. Reuniões entre os órgãos públicos têm buscado esclarecer as fronteiras entre liberdade religiosa e laicidade do ensino público, mas a ausência de consenso entre as partes envolvidas mantém o tema em aberto.
A questão dos intervalos bíblicos transcende o debate sobre práticas religiosas em escolas e reflete as tensões de uma sociedade plural que busca equilibrar tradições, direitos e a convivência democrática em espaços públicos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário