A trajetória política de Jair Bolsonaro, desde a ascensão meteórica de 2018 até o cenário de isolamento progressivo que se acentuou após a derrota eleitoral de 2022, revela mais do que simples mudanças de alianças. Expõe, em detalhe, como a construção de um governo centrado na lealdade pessoal, na retórica permanente de confronto e na ocupação estratégica de instituições por aliados sem compromissos sólidos com a preservação da autonomia institucional cria um terreno fértil para rupturas inevitáveis. O que se observa não é um afastamento pontual de figuras específicas, mas uma desmontagem quase completa de sua rede de apoio, tanto civil quanto militar, num processo que combina fraturas ideológicas, escândalos políticos, investigações criminais e desgaste de imagem.
Um dos pilares iniciais de sua gestão foi a presença expressiva de militares em cargos estratégicos, numa tentativa de conferir disciplina e credibilidade ao governo. Essa aposta, no entanto, carregava um risco estrutural: a lógica de funcionamento das Forças Armadas, com forte apego à hierarquia e à neutralidade política, não se harmonizava com o uso do aparato militar como escudo político. Com o tempo, generais que ocupavam postos-chave, como Carlos Alberto dos Santos Cruz, Fernando Azevedo e Silva, Walter Braga Netto e Augusto Heleno, passaram a enfrentar dilemas sobre a preservação da imagem da instituição frente à escalada de politização e às investidas contra a ordem democrática. O desgaste atingiu seu ápice quando investigações sobre a “minuta do golpe” e supostos planos para impedir a posse do presidente eleito Lula passaram a citar e alcançar oficiais próximos a Bolsonaro, transformando antigos aliados em alvos de inquéritos e potenciais delatores.
A relação com civis igualmente estratégicos para sua ascensão também se deteriorou. O caso de Gustavo Bebianno é emblemático: um dos principais articuladores da campanha de 2018, ele caiu logo no início do mandato, após atritos com a família presidencial e acusações relacionadas ao escândalo das candidaturas “laranjas” no PSL. Sua saída precoce foi um alerta de que o círculo de confiança presidencial não oferecia estabilidade — e que discordar, ou mesmo competir por protagonismo, poderia significar a expulsão imediata. Sérgio Moro, por sua vez, representava não apenas um trunfo eleitoral, mas a ponte com o eleitorado que exigia combate à corrupção. Seu rompimento público em 2020, denunciando tentativa de interferência na Polícia Federal, minou uma das principais bandeiras bolsonaristas e deixou claro que até mesmo figuras de peso internacional não estavam imunes à lógica de atrito interno.
No Congresso e na militância digital, a erosão foi igualmente severa. Joice Hasselmann, Alexandre Frota e mesmo parlamentares que construíram carreira surfando na onda bolsonarista passaram de aliados ruidosos a opositores ferrenhos, acusando o ex-presidente de centralizar decisões no núcleo familiar e de agir de forma errática em temas-chave. A ex-deputada Carla Zambelli, que simbolizava a linha de frente do bolsonarismo radical, acabou se tornando exemplo de como essa rede se fragmentou não só politicamente, mas também sob a pressão judicial — sua prisão na Itália, resultado de episódios conflituosos e investigações, demonstra como a proximidade com Bolsonaro deixou de ser vantagem e passou a significar risco jurídico e diplomático.
Outro fator de desgaste foi a pandemia de COVID-19, que expôs divergências insanáveis entre Bolsonaro e figuras que até então lhe eram próximas. O embate com João Doria sobre vacinação e medidas de isolamento tornou-se público e corrosivo, afastando um governador que, no início, acenava para uma possível aliança. A condução da crise sanitária, marcada por declarações controversas e resistência a orientações científicas, acelerou o distanciamento de lideranças políticas, de técnicos e até de segmentos do eleitorado que haviam visto no presidente um representante de pautas conservadoras, mas não necessariamente negacionistas.
O fio condutor dessas rupturas é um estilo de liderança que privilegia a lealdade incondicional e a presença em um círculo de influência controlado de forma quase familiar, em detrimento de pactos institucionais duradouros. Esse modelo, eficiente para manter coesão em tempos de vitória e popularidade, torna-se instável quando exposto a crises — sejam elas eleitorais, jurídicas ou de gestão. Na prática, cada investigação da Polícia Federal, cada exposição de escândalos envolvendo filhos e assessores, cada disputa de protagonismo interno funcionou como catalisador para mais um afastamento.
O resultado é que, ao perder a blindagem política e simbólica que lhe era oferecida por militares, magistrados, parlamentares e influenciadores digitais, Bolsonaro não apenas viu seu capital político diminuir, mas também passou a lidar com antigos aliados convertidos em críticos ou testemunhas contra ele. Assim, a desintegração de seu círculo revela mais que a perda de apoio: expõe a vulnerabilidade de um projeto que, ao se sustentar em fidelidades pessoais e no uso político de instituições, não construiu alicerces capazes de resistir às marés adversas. O isolamento atual, portanto, não é apenas consequência de derrotas eleitorais, mas o reflexo direto de uma liderança que não sobreviveu à própria maneira de governar.
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